O iPhone é responsável por muito rebuliço na indústria de tecnologia e uma das áreas afetadas, indiretamente, foi a distribuição de software.

O que a Apple fez não foi exatamente novo; com o iTunes App Store, a empresa adotou um modelo que há anos é usado nos consoles de videogame. Nintendo, Sega, Sony, até a Atari — essas empresas sempre reservaram para si o direito de controlar a distribuição de jogos, “licenciado” os títulos e se tornando “parceiras” dos desenvolvedores. Na prática, abocanhavam uma fatia das vendas e ainda faturavam vendendo kits de desenvolvimento.

O modelo de distribuição de software no iOS é exatamente o mesmo e, como nos videogames, o controle da plataforma impediu a distribuição de vírus e outros códigos maliciosos.

Altimit OS

O supersseguro ALTIMIT OS do universo .hack

Essa postura não nasceu de uma preocupação com segurança. Na série japonesa .hack, é um vírus, o Pluto’s Kiss, que desencadeia mudanças na indústria mundial de software, obrigando desenvolvedores a adotarem altos padrões de programação segura e um modelo que só permite a existência de programas autorizados.

Sistemas baseados em Linux e BSD há muito tempo se utilizam de repositórios de software oficiais para facilitar a instalação de programas. Mas a motivação da Apple foi financeira e, como tudo que envolve dinheiro, se espalhou mais rápido. O iPhone mostrou que isso podia dar certo.

Todo mundo quer controle

Paralelamente ao lançamento do iPhone, em 2007, quem vinha ganhando espaço era outra plataforma de distribuição de software: o Steam, da Valve. Até 2005, o Steam era uma comunidade e um portal de vendas de software da própria Valve. Aos poucos, a Valve começou a desempenhar o mesmo papel de “curador” que as fabricantes de consoles realizavam em suas plataformas.

O Google não acreditava que o truque da Apple daria certo. Adotou a mesma estratégia da Microsoft nos anos 80 e 90, criando uma plataforma livre. E o resultado não foi diferente: o Android se tornou a plataforma mais popular para smartphones, mas começou a ser ameaçada por códigos maliciosos — apesar de todas as medidas de segurança e restrições impostas pelo sistema.

O Windows “comum” é o único sistema moderno e popular que não dispõe de um repositório oficial de aplicações minimamente verificadas

Com muito a ganhar e pouco a perder, o Google restringe cada vez mais o acesso ao Android. Criou mecanismos de avaliação automática dos apps (o chamado Bouncer) e em meados de março anunciou que os aplicativos terão de passar por uma avaliação humana para “melhorar a experiência” dos usuários.

Nesse meio tempo, a Microsoft adotou por completo a estratégia da Apple, limitando o Windows Phone e o Windows RT (este hoje morto e sepultado) a aplicativos previamente aprovados pela empresa. A Apple, por sua vez, começa a experimentar o terreno e oferece aos usuários de OS X uma Mac App Store e a possibilidade ativar um Gatekeeper que permite apenas a execução de aplicativos autorizados — desta vez com alguns bons argumentos para segurança.

Resumida a bagunça, o Windows “comum” é o único sistema moderno e popular que não dispõe de um repositório oficial de aplicações minimamente verificadas, deixando esta tarefa “terceirizada” para a (pouco inclusiva) Valve.

E se a Microsoft se juntar à maioria?

Levando em conta a futura integração da plataforma proposta pelo Windows 10, a biblioteca de jogos existente no Xbox Live, o bem-sucedido experimento da Microsoft com a autorização prévia de drivers de sistema e o crescente interesse da Microsoft pela segurança — eles continuam tentando fazer milagres com o Windows Defender –, é difícil imaginar que a Microsoft não crie esse repositório também para o Windows.

Android e iPhone são custeados por vendas de suas lojas oficiais, enquanto o OS X é custeado pela venda do hardware. O que sobra para a Microsoft, senão copiar a mesma receita?

Se a Microsoft decidir tentar esse rumo, a maior ameaçada, claro, é a Valve. Fora das empresas, o que mantém o Windows relevante são os jogos. A Microsoft já detém o controle do que acontece no Xbox, mas, no Windows, esse privilégio hoje é da Valve. Se a Microsoft entrar nesse território, eles se tornam concorrentes.

A Valve está há alguns anos trabalhando no SteamOS, que é baseado em Linux, e em um modelo de console chamado Steam Box ou Steam Machine. A ideia é criar um Linux que funcione bem para jogar e que, claro, tenha todo o repositório do Steam disponível logo de cara.

Gabe Newell, diretor-executivo da Valve, explicou que o interesse da empresa em criar o SteamOS se deu pela “gigante tristeza” que foi o Windows 8. Em uma entrevista concedida em 2013 ao The Verge, Gabe disse considerar o Windows 8 “inutilizável”.

Em breve será possível ver um telefone da Microsoft capaz de executar qualquer programa de Windows. Mas não necessariamente todos os programas terão tal “privilégio”

Curiosamente, foi o Windows 8 que trouxe aos computadores e notebooks a interface “Modern” e, com ela, a loja oficial da Microsoft para aplicativos desta interface.

É claro que a Valve depende, sim, do sucesso da plataforma “PC” para sobreviver. Um mundo onde todo mundo só joga em consoles não é um mundo que precisa da Valve. E é também verdade que jogos em computadores são cada vez mais secundários para uma Microsoft que está confortável no mundo empresarial e que se sente à vontade para apostar suas fichas no Xbox.

Talvez chegue um momento em que a Microsoft tenha de decidir entre salvar o “PC” ou o Xbox. Mas essa decisão só será viável para uma Microsoft que esteja confortável, ganhando dinheiro com vendas do software alheio e podendo garantir aos desenvolvedores e produtores de conteúdo que seu sistema está livre das mazelas da pirataria.

Para ajudar, a plataforma Atom provou ser viável em dispositivos móveis. Significa que em breve será possível ver um telefone da Microsoft capaz de executar qualquer programa de Windows. Mas não necessariamente todos os programas terão tal “privilégio” — e nisso se apresenta uma oportunidade para que a Microsoft inicie uma transição natural para o novo ambiente controlado “para garantir compatibilidade com telas menores” (e abandonar todo o legado que faz do Windows o Frankenstein que ele é).

Com processadores cada vez mais potentes e a possibilidade de conectar o celular a um monitor com um teclado e um mouse sem fio, dispositivos “de mão” podem se tornar os novos híbridos. Em vez de tablet e notebook no mesmo dispositivo, que tal celular e “PC”?

O fracasso do Windows RT atrasou esse processo, que só não morreu por completo graças ao esforço da Intel em criar processadores x86 para celulares. Ainda que a Microsoft não esteja disposta a tentar de novo, é difícil não enxergar o mercado convergindo para esse modelo. Mesmo que o Windows vire poeira cibernética e o Linux tome seu lugar, este Linux virá na esteira à vapor da Valve, e o Steam será o grande repositório de aplicativos pagos e gratuitos fora do modelo open source.

Um admirável mundo novo

  • Do disquete para o CD-ROM, que matou o vírus de disquete;
  • Do CD-ROM para a internet selvagem, que fez nascer um rico ecossistema mundial de software e criou o worm e as epidemias mundiais;
  • Da internet selvagem para lojas oficiais e repositórios verificados, que podem matar tanto a riqueza do nosso ecossistema de software como os vírus epidêmicos.

As mudanças na distribuição de software não são alavancadas exclusivamente por preocupações ligadas à segurança — longe disso –, mas os vírus, sendo software, precisam acompanhar a evolução. Sem meio de burlar a segurança, aos criminosos virtuais restarão golpes com páginas falsas e ataques à própria rede.

Em grande parte, a mudança já ocorreu. Quem tem um iPhone, um Linux só com repositórios da distribuição, um Mac com o Gatekeeper ligado ou um Android na configuração padrão já vivencia esse mundo enclausurado, o walled garden.

O Windows é o único fora do clube, que não nos dá escolha nem por um lado nem por outro. Se a Microsoft decidir por não arriscar abandonar o legado, talvez os consumidores decidam que o Windows é um legado a ser abandonado.

Será que o mercado suporta um modelo restrito? A Apple e o Google nos dizem que sim.

Agora pense você em um mundo no qual as pessoas não são mais livres para executar programas. Eu só me prestarei a isso depois que a realidade estiver posta; por mais que eu enxergue o que está acontecendo, a mudança parece tão grande, tão extrema, que não dá para acreditar que isso possa mesmo ser real.

Se você acha que estou errado, portanto, temos algo em comum. Mas também penso cada dia mais que não há razão para duvidar. Quanto mais confiamos nossas vidas aos computadores, mais exigimos deles confiabilidade. É aí que o modelo restrito, que une segurança e dinheiro, se mostra superior.

Além dos consumidores, muitos outros ficariam confortáveis com esses modelo — incluindo aí os governos que espionam o mundo. Se essa confiança for perdida, o que tomaria o seu lugar?

Escrito por Altieres Rohr

Editor da Linha Defensiva.

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